“Eu não errei dez mil vezes.
Eu apenas encontrei dez mil jeitos
que não funcionam.”
Thomas Edison
É inimaginável pensar na existência de um novo conhecimento para trazer de volta ao mundo pessoas que a sociedade médica já considerava literalmente mortas há décadas. Apesar de ser inimaginável esse processo de criação de um novo conhecimento com o propósito de trazer de volta a vida de pacientes internados no Hospital Berth Abraham, em Nova York, isso ocorreu nos anos 60 do século passado, quando Oliver Sacks, um médico neurologista, se debruçou sobre essa causa. A situação está relatada em um livro autobiográfico intitulado Tempo de Despertar e em um filme baseado nesse livro, no qual o autor apresenta as suas experiências clínicas com um grupo de pacientes pós-encefálicos que se encontravam, havia vários anos, num estado catatônico, incapazes de fazer qualquer tipo de movimento, sem ajuda de profissionais. Esses pacientes eram sobreviventes da epidemia denominada Encefalite Letárgica ou Doença do Sono, registrada em alguns países no período de 1916 a 1927.
Oliver Sacks (1933–2015) era neurologista, químico, escritor e professor da Universidade de Columbia, da Faculdade de Medicina Albert Einstein, da Universidade de Yeshiva, da NYU Langone Medical Center e da Universidade de Warwick. Foi autor de vários best-sellers, cuja maioria versa sobre estudos de casos de pessoas com distúrbios neurológicos. Como criador de novos conhecimentos na área neurológica, uma das características destacáveis era que, diferente de outros médicos pesquisadores contemporâneos que se interessavam por explorar conhecimentos e experimentos modernos na área médica, Sacks tinha uma grande atração por conhecer e basear-se em conhecimentos da medicina secular. Outra característica que também chamava atenção é o fato de que ele gostava de conviver socialmente com os pacientes portadores das patologias neurológicas complexas. Considerava tão relevante esse convívio que muitas vezes chegava a se hospedar na residência de alguns pacientes para entender seus hábitos, sintomas e, quando algo chamava a atenção, ele escrevia suas descobertas. Era comum esses registros tornarem-se livros carregados de conhecimentos importantes para a evolução da medicina, em especial da área neurológica.
A missão principal deste artigo é relatar as principais fases da criação de um determinado conhecimento desenvolvido por Sacks no período entre 1969 e 1972, cujo objetivo foi buscar a cura do estado catatônico de pacientes internos no Hospital Berth Abraham, onde trabalhava como médico neurologista. Para descrever esse processo de criação do conhecimento, vou usar como base metodológica as cinco fases clássicas de criação de novos conhecimentos, propostas por Nonaka e Takeuchi (fig. 1). A demanda inicial para a criação de uma solução de cura para os pacientes pós-encefálicos nasce de uma grande angústia de Sacks. Ele sabia que, apesar de o corpo estar adormecido, dentro desses pacientes havia consciência, havia vida, sobretudo quando ouviam determinadas músicas. A proposta era trazê-los de volta ao mundo, mas para isso precisava investir em novos conhecimentos e novos recursos para despertá-los.
Cinco Fases do Processo de Criação do Conhecimento
FASE 1 – Compartilhamento do Conhecimento Tácito
Sacks estava diante de pacientes com diferentes doenças psiquiátricas, porém havia um grupo que se destacava por apresentar sintomas atípicos. Nos prontuários desses pacientes, no campo diagnóstico, estava descrito “Demência Desconhecida”. Sacks começou a perceber que, embora todos estivessem num sono interminável, quando estimulados de forma específica, apresentavam alguns reflexos. Diante dessa nova informação, Sacks tenta compartilhar suas novas descobertas com os médicos do hospital hierarquicamente superiores. Porém, além de não o apoiarem nessa pesquisa, ainda desprezavam suas constatações de forma jocosa. Todavia, os enfermeiros que lidavam com os pacientes diariamente e acompanhavam de modo atento as novas descobertas, voluntariamente passaram a apoiá-lo, o que fez a grande diferença, pois o impulsionou a continuar com as pesquisas na busca do novo conhecimento para transformar o quadro desses pacientes.
Com a ajuda dos enfermeiros e dos profissionais da área de reabilitação do hospital, Sacks analisa cada paciente, caso a caso. Percebe, inclusive, haver prontuários que não apresentavam nenhuma nova anotação há mais de 25 anos. Encontrou nesses prontuários um fator relevante e comum a todos os pacientes do grupo, ou seja, todos haviam sido diagnosticados na infância com encefalite letárgica ou doença do sono, na época em que houve uma epidemia dessa doença.
Sacks, por meio de pesquisas em jornais da época em que ocorreu tal epidemia, descobriu um médico, já bem idoso, que vivenciou aquele momento tratando pacientes acometidos pela doença. Sacks fez contato com esse médico, e ambos compartilharam seus conhecimentos sobre as características da doença, tendo concluído que realmente os pacientes internados ali contraíram a doença quando criança, na década de 20. Milhares de crianças morreram no estágio agudo da doença, e aquelas que sobreviveram e acordaram, pareciam bem, como se nada tivesse acontecido. Naquela época, não era perceptível o quanto a infecção havia danificado a saúde de tais pacientes, mas os anos se passaram, e os sintomas neurológicos apareceram. Na década de 30, começaram a surgir nos consultórios pessoas pós-encefálicas, que não podiam mais se vestir ou se alimentar; em muitos casos, não conseguiam nem falar. Alguns pacientes já não mostravam nenhum pensamento, pois o vírus havia comprometido suas habilidades.
Os diálogos entre Sacks e o médico que tratou de doentes na fase da epidemia ajudaram muito na evolução das pesquisas in loco. Sacks continuava acreditando na sua percepção de que, dentro daqueles corpos, havia vidas a serem resgatadas e, com a ajuda dos profissionais do hospital, continuou as buscas sobre quais ações poderiam estimular os doentes a realizarem seus movimentos voluntariamente.
Na esperança de obter efetivo apoio da direção do hospital para essas pesquisas, Sacks, mais uma vez, tenta sensibilizar seus superiores. Na oportunidade, usa um novo recurso e apresenta o resultado de um eletroencefalograma que realizou em um dos pacientes. Durante o exame, ficou visível que todas as vezes que o paciente ouvia o médico chamar pelo seu nome havia uma alteração no exame, o que indicava alguma interação com o ambiente externo. Assim, de posse dessa evidência, a direção do hospital se comprometeu a apoiar a pesquisa.
FASE 2 – Criação de Conceitos – Alinhamento das Premissa
Após diversos compartilhamentos com diferentes modelos mentais, surgiu um novo conceito: os pacientes pós-encefálicos que apresentavam os mesmos sintomas foram agrupados numa parte específica do hospital. Sacks, em reunião com os mantenedores da instituição hospitalar, médicos e profissionais de saúde, apresentou o novo status dos conhecimentos rumo à cura desses pacientes. Incluiu nessa apresentação o novo conceito associado aos sintomas daqueles pacientes. Ele seguiu dizendo:
(…) havia uma rigidez na musculatura axial, isto é, um dano a todos os reflexos da postura e não um mal funcionamento ou uma rigidez proveniente de parada cerebral. O que é chocante é uma profunda máscara axial devido ao aferente, que agora sabemos não deve ser confundido com uma apatia ou uma catatonia. (Extraído do filme “Tempo de Despertar”)
A criação dos novos conceitos e o alinhamento das premissas precisavam ser compartilhados periodicamente com os mantenedores da instituição hospitalar.
Os profissionais de saúde, em especial os enfermeiros, participavam ativamente das pesquisas de Sacks, em todos os experimentos. Eles eram agentes principais nas leituras de histórias, nas sessões musicais, nas danças e em diversas atividades lúdicas afins ao tratamento e aos experimentos. A proposta dessas atividades era tentar perceber quais estímulos externos provocavam nos pacientes alguma reação. Os exercícios eram realizados coletivamente, mas as reações percebidas precisavam ser individuais, e as mais significantes eram registradas no prontuário de cada paciente.
Esse grupo de pacientes, em cujo prontuário, antes, constava como diagnóstico “demência desconhecida”, a partir de agora, passaria a ter um novo conceito. Eles passaram a ser sobreviventes da encefalite letárgica, ou seja, eram pacientes que emitiam respostas a estímulos específicos, que, por sua vez, apresentavam uma esperança de que havia vida dentro dos seus corpos. Considerando esse novo status no processo de criação do novo conhecimento, o próximo passo foi investigar se uma nova droga denominada L-Dopa (dopamina sintética) teria eficácia no tratamento desses pacientes.
FASE 3 – Justificação de Conceitos – Experimento da Droga L-Dop
A droga L-dopa foi desenvolvida para o tratamento de pacientes diagnosticados com Parkinson (doença neurodegenerativa progressiva). Para esta patologia o efeito se apresentava muito positivo, e havia uma expectativa de que os pacientes pós-encefálicos desenvolvessem sintomas parkinsoniano, daí a ideia de experimentar tal droga nesses pacientes. Sacks obteve as devidas autorizações para experimentar o uso dessa droga em apenas um paciente. Após diversas tentativas de ajustar a quantidade exata e eficaz de miligramas, a droga mostrou-se muito eficaz para este paciente. Posteriormente, mais 14 pacientes foram submetidos ao uso do medicamento, e como resposta, todos experimentaram o seu tempo de despertar. A respeito desse importante momento, Sacks (2015) relata o seguinte no livro Sempre em movimento (2015):
Quando dei L-dopa a esses pacientes, o “despertar” não foi apenas físico, mas também intelectual, perceptual e emocional. Essa reanimação ou despertar global contrariava os conceitos de neuroanatomia dos anos 1960, uma neuroanatomia que via o motor, o intelectual e o afetivo como compartimentos do cérebro totalmente separados e não comunicantes (p. 150-151).
As evidências positivas ou negativas ocorridas no comportamento dos pacientes eram filmadas e registradas nos devidos prontuários, para compor o histórico do tratamento. Ficou comprovado que os registros na memória dos pacientes antes de entrarem no sono patológico continuavam preservados na mente de cada um. Ao acordarem, eles pensavam que ainda estivessem na década em que adormeceram, isto é, na década de 30. Sendo assim, se comportavam muitas vezes como se estivessem vivendo aquela época.
FASE 4 – Construção de Um Arquétipo – Contexto Fina
Os pacientes tiveram um período de despertar bastante intenso, havia uma euforia para viver cada segundo, cada um com a sua história de vida, com as suas características; uns resgataram o dom de cantar, dançar, passaram interagir com os seus visitantes, familiares e amigos que os visitavam. Houve momentos em que alguns demonstraram vontade de ter alta do hospital, provando assim a eficácia do uso da medicação L-dopa. Muitos desses pacientes expressaram, em diversos momentos, que não entendiam por que o mundo em 30 anos pode mudar tanto, pois, quando liam os jornais ou ouviam os noticiários do tempo presente, percebiam que a forma atual de vida das pessoas era ruim, todos estavam sempre com pressa, havia muitas notícias de catástrofes, assassinatos. Diziam que o mundo estava muito violento e que as pessoas deveriam aproveitar mais a vida, ter mais gratidão e alegria. O despertar para a vida desses pacientes tinha um valor inimaginável e imensurável, por isso não entendiam por que as pessoas, nessa época, eram tão diferentes daquelas que elas lembravam, nas décadas de 20 ou 30, ocasião em que adormeceram.
Tudo parecia ir bem, até que o primeiro paciente a testar a droga começou a apresentar tiques nervosos e espasmos como efeitos colaterais da medicação; posteriormente todos revelaram esses mesmos sintomas, inviabilizando assim o tratamento. E todos voltaram ter os mesmos sintomas antigos, como sono contínuo, e a ficar ausentes do mundo. Então, qual seria o sucesso dessa construção do conhecimento? Sacks, em reunião com os médicos do hospital, mantenedores e profissionais de saúde do Hospital Berth Abraham, relata o aprendizado que foi possível construir nesse processo e, com uma carga de emoção muito intensa, diz:
Podemos nos esconder por trás da ciência e dizer que foi o remédio que falhou ou então que a doença tinha voltado, ou que os doentes não conseguiram superar por terem perdido anos de suas vidas, mas a realidade é que nós não sabemos o que deu errado. O que sabemos é que, com o fechar da janela química, outro despertar aconteceu. O despertar para saber que o espírito humano é mais forte do que qualquer droga, e é isso que precisa ser alimentado com o trabalho, a distração, a amizade e a família. (Extraído do filme “Tempo de Despertar”)
Na metodologia de Criação de Novos Conhecimentos, de Nonaka e Takeuchi, a fase de construção do arquétipo proposta, trata-se de uma comparação entre o status antigo e o status atual do que se esperava conhecer. Nesse caso em questão, a construção do novo conhecimento, embora concretamente não se tenha conseguido o êxito esperado, é possível fazer uma retrospectiva e constatar comparativamente os dois status. Nessa comparação é recomendável que se atente para a possibilidade de destacar um grande volume de novos conhecimentos criados ao longo de todo o processo. Talvez Sacks, com a sua simplicidade de um humano diferente dos demais, tenha falecido no ano de 2015, sem ter tido a noção total e real de todos os impactos que seus conhecimentos gerados nessa pesquisa podem ter tido para a ciência médica. De todos os novos conhecimentos criados ao longo dessa trajetória, existe um que o próprio Sacks descreve em seu livro intitulado “Sempre em movimento” (2015).
Os integrantes das várias equipes – psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas musicais, entre outros – volta e meia apareciam para discutir os casos dos pacientes. Quase todos os dias havia debates férteis e instigantes sobre os eventos inéditos que se desenrolavam diante das nossas vistas, que exigiam abordagens igualmente inéditas de todos nós (p. 151-152).
FASE 5 – Difusão Interativa do Conhecimento
Esse processamento de saberes que se caracterizou pela criação de um novo conhecimento, para despertar de um sono interminável 15 pacientes, inspirou Sacks a escrever uma infinidade de artigos publicados em diversas revistas na área médica. Em 1973, publicou o livro Tempo de Despertar que, em 1990, foi adaptado para o cinema, cujo filme foi estrelado por Robin Williams e Robert De Niro. Este, por sua participação, ganhou o Oscar de 1991 de melhor ator. O filme também ganhou o Oscar de melhor filme e melhor roteiro adaptado.
O elenco dos novos conhecimentos registrados durante o processo de busca da cura dos pós-encefálicos foi exaustivamente registrado e divulgado, o que possibilitou a proliferação de outros conhecimentos, formando assim a interminável espiral do conhecimento.
De tudo que temos visto sobre a gestão do conhecimento, sobretudo na criação de novos conhecimentos, é possível constatar que quando se tem um propósito claro, quando os parceiros são cúmplices e adequados, quando os novos conceitos se encaixam nas verdades levantadas, quando os espíritos envolvidos convergem para aliviar uma dor similar ao da necessidade de “despertar de um sono eterno”, quando a construção de um novo conhecimento toma a sua forma e assume a sua força, daí, a sua potência pode servir para realizar o inimaginável.
Conhecer dói, fazer este conhecimento crescer buscando a sua forma ideal, forma que caiba e se encaixe numa solução para atender a uma necessidade humana, dói mais ainda. Mas, só por saber que não há outro caminho, só por saber que o conhecimento é o próprio caminho, o fardo já se torna mais leve.
Por Elisabeth Vargas.
Sobre a autora:
Elisabeth Vargas, como profissional de informação, atuou em empresas do sistema PETROBRAS por 15 anos, como especialista em Gestão do Conhecimento, desenvolveu projetos para implantação de melhorias em ambientes organizacionais e de aprendizagem. Atuou ainda como Diretora de Administração da SBGC e gerente de conhecimento da Serasa Experian. Atualmente, é consultora na área de Gestão do Conhecimento e, como Psicóloga, realiza atendimento clínico, usando uma abordagem psicanalítica.
Referências
IKUJIRO, Nonaka; HIROTAKA, Takeuchi. Criação do conhecimento na empresa. Rio de Janeiro, Campus, 1997.
SACKS, Oliver. Sempre em movimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SACKS, Oliver. Tempos de despertar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
SACKS, Oliver. Um antropólogo em marte: sete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Tempo de despertar. Diretor: Penny Marshall. Produção de Walter F. Parkes; Lawrence Lasker. EUA: Sony Pictures, 1990. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AJR5Z0UMxA4